SUICÍDIO VS. ACIDENTE

Alexandre Dias 18.03.2013

“(...)
Só minh'alma aqui ficou
Debruçada na amurada,
Olhando os barcos... os barcos!...
Que vão fugindo do cais.”

(trecho de "Canção do suicida" de Mario Quintana)

No post anterior apresentamos o relatório inédito que Jacob do Bandolim elaborou em 1959, por ocasião de suas investigações na Colônia Juliano Moreira, em cuja represa Nazareth morreu afogado em 1934. Jacob conclui assertivamente: Nazareth suicidou-se, não foi um acidente.

Os principais argumentos de Jacob que identifiquei são:

1) O caminho era perigoso. O caminho para subir até a represa da colônia durava 1 hora, era estreito, pedregoso e cheio de limo, atravessando uma mata muito fechada, com cobras e outros bichos. Os percalços eram grandes, levando a machucados nos pés. Isso desestimularia Nazareth a subir até a represa, pois não consta que Nazareth fosse adepto de esportes ou atividades ao ar livre, especialmente considerando que ele já estava com 70 anos. Se quisesse passear, iria a outros lugares mais próximos que eram bonitos e pitorescos. (O biógrafo Luiz Antonio de Almeida, que percorreu o mesmo caminho duas vezes, em 1978 e por volta de 1993, também sentiu dificuldade em chegar lá. Porém observou que a trilha era capinada com frequência).

2) A represa não oferecia riscos para alguém se acidentar, e não possuía nenhuma beleza especial. Ela era pequena, medindo cerca de 12m x 40m, e atingindo cerca de 3m na parte mais profunda. O muro da barragem era largo o suficiente para atravessarem duas pessoas sem o perigo de caírem, medindo 80 cm em seu ponto mais largo e 40 cm em seu pouco mais estreito. Jacob afirma: “Eu corri muito mais risco no caminho do que lá. Lá não encontrei risco nenhum”. A queda d’água ao fundo tinha no máximo 12 metros de altura, e a represa era uma simples “caixa cheia de água”, que abastecia a Colônia. O único estímulo que alguém teria para ir até lá seria para tomar banho, diante de um calor tórrido, porém isto era proibido e Nazareth podia tomar banho em seu apartamento.

Cachoeira da represa da Colônia Juliano Moreira, s.d. Coleção Luiz Antonio de Almeida.

3) Nazareth tinha o propósito evidente de fugir. Nazareth era vigiado por Bento d’Ávila, enfermeiro particular contratado pela família, que ganhava mais de três vezes o salário de um guarda da época. Ele era “o guarda de Nazareth”, e tinha de vigiá-lo muito bem para garantir seu emprego. Nazareth passou pela bandeira da porta dos fundos, o que mostra que ele estava desesperado, queria sair de qualquer maneira, burlando a vigilância. Se ele quisesse passear, esperaria uma hora, duas horas. Segundo Jacob, quem quer eliminar-se, “tem que se eliminar imediatamente, não espera para o dia seguinte. Ninguém planeja uma autoeliminação a prazo certo. Há a crise de desespero e a eliminação imediata, seja de que maneira for”. E acrescenta: “Nazareth tinha um objetivo específico ao sair pela bandeira da janela e subir até a represa, por uma mata fechada por uma hora de caminhada em terreno pedregoso. Se ele era vigiado, ele naturalmente não tinha ao seu dispor uma corda, uma faca ou um veneno para poder eliminar-se”.

4) Existe um senso de autossegurança no louco. “Todos os loucos têm sensação de segurança quando não querem se eliminar.” “Se você pega numa arma e aponta para um louco (...), ou ele avança para cima de você ou ele foge”. (...) Porém quando querem se eliminar, se entregam até ao abandono”, como aconteceu com outros doentes da colônia que morreram na mata.

Por último Jacob admite a possibilidade de ele ter suicidado em decorrência de uma crise aguda do estado doentio, ou até por um rasgo de lucidez. Porém conclui: “Mas que foi suicídio, para mim foi”.

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Para o biógrafo Luiz Antonio de Almeida, maior autoridade sobre a vida de Ernesto Nazareth, o raciocínio de Jacob faz perfeito sentido, porém ele acredita que não é suficiente para concluir que houve suicídio. Também não afirma categoricamente que foi um acidente, optando por deixar a questão em aberto. A única ressalva que faz sobre as informações de Jacob é que Nazareth não era alto, como Jacob afirmou, e também não pesava 90 quilos. Sua altura era de 1,65m e pesava cerca de 75 quilos.

Almeida, durante as pesquisas que iniciou quando ainda era adolescente, teve o privilégio de entrevistar em 1979 o “guarda de Nazareth”, como o chama Jacob: Bento Manuel Moreira de Ávila, o Bento d’Avila. Bento foi o enfermeiro particular de Ernesto Nazareth de novembro de 1932 até 1º de fevereiro de 1934, quando o compositor faleceu. Este depoimento inédito constitui um documento precioso, fundamental para a compreensão dos últimos anos de vida de Nazareth. Agradecemos a Almeida por permitir a citação de trechos deste depoimento e de seu livro não-publicado.

Durante o depoimento de Jacob, vemos a menção de que Nazareth fugira “pela bandeira da porta”. Antigamente as portas possuíam uma janela no topo, com o objetivo de fornecer ventilação. Porém, com o passar do tempo, essas janelas foram perdendo o propósito quando os prédios passaram a ter ar-condicionado e também por questões de segurança. Abaixo vemos dois exemplos de bandeiras de portas antigas:

O livro “Bandeiras de portas e janelas do Brasil no séc. XIX”, de Tilde Canti, 1983, oferece diversos exemplos de bandeiras, mostrando quão comuns eram: 

Não sabemos exatamente como era a porta do pavilhão em que Nazareth ficava, mas é surpreendente que ele tivesse conseguido alcançar a bandeira da porta e depois atravessá-la, pois provavelmente era alta e estreita.

Essa não foi a única tentativa de fuga de Nazareth, como veremos a seguir. O enfermeiro Bento d’Ávila afirmou a Luiz Antonio de Almeida: “era um velho forte, (...) simpático, risonho, alegre; sujeito que ninguém que visse dizia que ele era um doente mental. Bem arrumadinho, bem ajeitadinho”. Embora em um trecho ele afirme que “o Nazareth não pensava em sair, vinha cansado e queria ficar em repouso”, em diversos outros trechos afirma o contrário: “Andava bem e ligeiro. Era desses caras que vê ele aqui e quando procura não vê mais. Ligeirinho. (...) O negócio dele era liberdade, tocar piano e sair fora”.

Bento ressalta a dificuldade de tinha em manter Nazareth sob vigilância durante os passeios que faziam pela cidade: “uma vez, ele fugiu de mim na cidade, ali na saída da [Rua do] Ouvidor, quando a gente dobrava a Avenida para ir pro [Palácio] Monroe, para pegar um [ônibus para o] Méier... um negócio que viesse pra cima. Ele sempre procurava tirar distância e eu dava uma apertada nele. Ele dava uma corridinha e eu imprensava ele, se não ele escapulia mesmo. Um sujeito desse, depois que escapa, para se achar é difícil pra chuchu, ninguém viu, ninguém vê... Com ele, a gente não podia facilitar. A ideia fixa dele era se mandar, sem destino, sair correndo à toa”.

Após algumas crises nervosas, desde pelo menos 1930, Nazareth foi internado primeiramente em 10/07/1932 no Hospital de Neuro-Sífilis da Fundação Gaffrée e Guinle, que funcionava em um dos pavilhões do Hospício D. Pedro II, na Praia Vermelha (atualmente Palácio da Reitoria da UFRJ). Lá ele foi diagnosticado com sífilis, que nesta época não tinha cura. O melhor tratamento disponível era a malarioterapia, que, segundo o Dr. Heitor Carpinteiro Péres, um dos médicos da Colônia na época de Nazareth, informou ao biógrafo, “consistia em injetar a malária benigna no doente, para que ele tivesse cerca de oito acessos de febre, pois o micróbio da sífilis não resiste a altas temperaturas”.

Última foto de Nazareth. Hospital de Neuro-Sífilis da Fundação Gaffrée e Guinle - Hospício D. Pedro II, ca. 1933, (Coleção Luiz Antonio de Almeida)

Segundo Bento, “nessa casa [Fundação Gaffreé e Guinle], saíam com [Nazareth] para o pátio de manhã, e ele ficava bolando um jeito de sair dali. Acertou lá, com as ideias dele, uma árvore que tinha perto do muro. Trepou na árvore e se jogou para fora. Fraturou o braço direito”.

Depois disso voltou para casa, mas, segundo Bento, “ficou ainda mais nervoso” diante da impossibilidade de tocar piano. Em 04/03/1933 Nazareth foi internado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, instalado em um dos mais antigos engenhos da região, o Engenho Novo. Segundo Luiz Antonio, “à época, desenvolvia-se junto àquela instituição o inovador tratamento de se aplicar aos doentes mentais atividades agrícolas como terapia ocupacional. Mas para a família Nazareth o que mais interessava era a distância, pois acreditava-se que isto pudesse desestimular o compositor quanto a sua obstinação por fugir”. Nas palavras de Bento, “a Colônia era beco sem saída, rua que não tinha saída”.

 

As professoras Eulina Nazareth (filha de Ernesto) (Acervo Ernesto Nazareth/IMS, ca. 1957) e Maria Mercêdes Mendes Teixeira (Coleção Luiz Antonio de Almeida, s.d.).

Nazareth era visitado por seu filho Ernestinho e sua esposa Esther, e com mais frequência por sua filha Eulina acompanhada da profª Maria Mercedes Mendes Teixeira. Nazareth aguardava Eulina na casa do administrador da Colônia, Antonio Gouvêa de Almeida, onde havia um piano de armário da marca Lux. Lá Nazareth tocava com frequência, por vezes misturando a parte de uma música com a parte de outra. Segundo Bento, “ele só reclamava por não o deixarem sair. Reclamava da filha, que tinha ele sobre pressão, não deixava fazer o que ele queria. Dizia ele: ‘- Foi pra isso que eu te criei, Eulina?’ ”.

Colônia Juliano Moreira. Fazenda-sede e antiga residência do administrador, s.d. Coleção Luiz Antonio de Almeida.

Segundo Almeida, “na última vez em que Eulina (acompanhada por Maria Mercêdes) viu seu pai, este lhe disse, apontando para a mata atrás do seu alojamento: ‘Descobri um caminho para Laranjeiras. Basta que eu siga por ali, que eu chego lá em casa!...’. Ainda segundo o biógrafo, Eulina, cerca de trinta anos depois, visitando a redação de O Globo, afirmou que “ele entrara na mata pretendendo ir visitar a família, que então residia no Matoso (Praça da Bandeira)”.

A Colônia ficava a cerca de 23km da Rua do Matoso (que por sua vez ficava próxima do bairro de Laranjeiras), tornando a afirmação de Nazareth coerente, embora o trajeto fosse inviável para se percorrer a pé. O mapa abaixo, do Google Maps, mostra a localização dos três pontos, da esquerda para a direita: (A) Colônia Juliano Moreira (Jacarepaguá); (B) Rua do Matoso (Praça da Bandeira); (C) Laranjeiras

Em um trecho do relatório de Jacob, vemos que os internos da Juliano Moreira ficavam soltos, chegando a passar a noite na mata, pois se viam restos de fogueira no caminho até a represa. Isto soa como um absurdo para os padrões de hoje, e provavelmente também o era para a época. Porém não sabemos o quanto Eulina estava ciente do risco que seu pai corria. O fato é que tentou proporcionar-lhe o melhor pagando a guarda particular de Bento d’Ávila, que se revezava dia sim, dia não na vigilância de Nazareth com o enfermeiro Necar Quintanilha, funcionário da Colônia. (Além disso, afirmou aos jornais, depois da morte do pai, que iria processar a Colônia). Portanto Nazareth não era livre para caminhar sozinho pelas dependências da Colônia.

A situação na Colônia Juliano Moreira entrou em franca decadência até 1980, quando o Fantástico fez uma reportagem denunciando o abandono que os doentes sofriam. Veja um trecho da reportagem original aqui. Lá ficou internado por mais de 50 anos o famoso artista sergipano Bispo do Rosário.

O biógrafo Luiz Antonio de Almeida, que visitou a Colônia pela primeira vez em 1978, descreveu-a como um “circo dos horrores” em que os doentes podiam ser encontrados nus, abandonados, em meio a muito descuido. Depois da reportagem, a Colônia passou a ser dirigida pelo Dr. Heimar Camarinha, que começou a colocar ordem na instituição.

Pesquisando na Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional, encontramos uma notícia surpreendente: dois meses depois da morte de Nazareth, um interno chamado Euclydes Guttierrez, de apelido “Carnaval”, foi encontrado afogado na mesma represa, depois de alguns dias de desaparecido. Ele, assim como Nazareth, tinha o impulso de fugir. A matéria do Correio da Manhã (10/04/1934) menciona a dificuldade de se chegar ao local, e também a morte de Nazareth recém-ocorrida.

Talvez seja cedo para afirmar se esta notícia enfraquece ou fortalece a tese de Jacob. O que fica claro é o risco que os doentes corriam.

No dia em que Nazareth fugiu, o dia era de sol, porém não muito quente segundo Bento, e quem estava a cargo de Nazareth era o enfermeiro Necar Quintanilha, que jogava damas na varanda na frente do pavilhão de Nazareth. Ernesto aproveitou-se da brecha e fugiu pela janela da porta dos fundos, como vimos, onde não havia movimento. Segundo Luiz Antonio, o pavilhão em que Nazareth ficava já havia sido derrubado quando realizou sua visita em 1978 (só sobrara o alicerce), porém há outros dois pavilhões próximos que ainda estão de pé e são idênticos ao de Nazareth. Dos três pavilhões, o de Nazareth era o mais afastado, mais próximo da represa.

Como informou uma notícia do Jornal do Brasil, publicada logo depois do desaparecimento, Nazareth “vestia na ocasião calça branca pijama e saiu sem chapéu”, e foi encontrado mesmo de pijamas. Sabe-se que Nazareth tinha roupa de passeio completa. Segundo Bento: “Nazareth tinha meia-dúzia, mais ou menos de ternos. Ele se vestia bem, usava linho quase que o dia todo, camisa, paletó, quase toda a roupa dele era de verão. Bem tratado ele era pela família”. Portanto, em circunstâncias normais, ele sairia do quarto de pijamas, mesmo que fosse para passear dentro da própria Colônia.

No depoimento de Bento, encontramos a importante informação de que, dentre os passeios que fazia acompanhando Nazareth, alguns eram para os lados da cachoeira: “E eu disse para [o diretor Antonio Gouvêa de Almeida, quando Nazareth desapareceu]: olha, o Nazareth não foi para fora, ele não iria para fora, ele só está para cá, pra dentro, ou entrou para cachoeira ou então lá para o Franco da Rocha [pavilhão próximo ao morro denominado Dois Irmãos], pois eram os caminhos que nós andávamos. Era alí que todos os dias nós saíamos, eu, ele, o Álvaro e o Ênio... [outros doentes internados]”.

Correio da manhã 03/02/1934

Nazareth fugiu da Colônia numa quinta-feira, dia 1º de fevereiro, possivelmente de tarde, coincidindo com o aniversário de Ernesto Nazareth Filho, o Ernestinho. Eulina visitava o pai todas as quintas-feiras às 15h, porém neste dia não foi visitá-lo, provavelmente devido ao aniversário do irmão (de acordo com depoimento de Julita Nazareth Siston, sobrinha de Ernesto, ao biógrafo Luiz Antonio de Almeida).Como uma derivação disso, perpetuou-se a informação de que Nazareth teria fugido para ir ao encontro do filho.

Porém quão lúcido estava Nazareth para se lembrar desta data? No prontuário de Nazareth presente na Colônia Juliano Moreira, que hoje está desaparecido e cujo conteúdo sobreviveu graças à transcrição que Luiz Antonio de Almeida fez, lemos que sua memória estava embaralhada: “(...) A sua associação de idéas frequentemente assume o typo maniatiforme com mudança constante de objectivo, sem dominio de uma mesma directriz ou de uma representação principal, antes obedecendo ás influencias fortuitas do ambiente ou parentesco phorico das palavras. Memoria: não fixa os factos recentes e narra baralhadamente os factos remotos de sua vida”.

Junto ao prontuário do compositor, Luiz Antonio de Almeida descobriu um bilhete escrito por ele, destinado ao pai, e que jamais chegou a seu destino. Diferentemente do que se possa pensar, seu pai, Vasco Lourenço da Silva Nazareth, estava vivo e contava então com 96 anos. Ele viria a falecer aos 101 anos apenas em 1940. Estas são as palavras presentes no bilhete, as últimas de Nazareth:

“Ao meu prezado Pai
18 de agosto de 1935.
Do Ernesto Nazareth, o sacrificado da
D. Mercedes e da D. Eulina também, passo
muito mal tenho tosse toda noite preciso
de Jatahy, me deixaram como um cachorro
doente, mas estou passando bem de saúde.
Disseram-me que iam trabalhar, me deixa-
ram sem dinheiro e dessa maneira de tra-
tamento chamado, que diabo de descaso pa-
ra mim, que fiz eu de mal Das 4 horas da
tarde e 6 fecham todas as portas, não a-
tendem a ninguem é urgente um automóvel
bem cedo de 12 h. ás 2 da tarde chova ou
não chova são esses os meus procedimen-
tos morais
Adeus a todos do recolhido E Nazareth ”

Como vemos, o ano, mês e provavelmente o dia estavam errados, o que enfraquece a tese de que Nazareth teria fugido para ir ao encontro de Ernestinho em seu aniversário.

Na verdade, em uma primeira leitura, o bilhete pode soar completamente caótico, próprio de um estado demente. Porém, como observa Luiz Antonio “nele, podemos observar certa ordem de raciocínio, pois apresenta introdução (‘Ao meu prezado Pai’), tema principal (suas queixas) e conclusão (‘Adeus a todos...’)”. Ele faz referência a ser “o sacrificado” de Eulina e Mercedes, o que é compatível com a reclamação de que elas não o deixavam fazer o que queria (“Foi pra isso que eu te criei, Eulina?”).

Este bilhete provavelmente ainda irá fornecer importantes insights sobre o estado mental de Nazareth e as circunstâncias que antederam sua morte. Chamam a atenção as várias queixas que expõe: 1) “passo muito mal”; 2) “me deixaram como um cachorro doente”; 3) me deixaram sem dinheiro; 4) “que diabo de descaso para mim, que fiz eu de mal[?]”; 5) Das 4 horas da tarde e 6 fecham todas as portas, não atendem a ninguém.

Luiz Antonio encontrou indícios de que o sofrimento de Nazareth poderia ser maior do que se pensava. Em entrevista ao biógrafo, Esmeralda de Almeida Monteiro, funcionária do Ministério da Educação, afirmou: “Naquela época, eu trabalhava como pagadora do então Ministério da Educação e Saúde. Eu todo mês ia à Colônia, só para pagar os funcionários. No mês seguinte à morte do Nazareth, eu ouvi de um funcionário, acho que era um rapaz do laboratório, um técnico, que ele, o compositor, teria sido vítima de uma violência sexual, por parte de outros internos. Isso é muito comum num lugar daqueles. E, a partir daí, traumatizado, ele teria procurado dar fim à própria vida”.

Isso reforça a tese de Jacob do Bandolim (embora ele não tivesse acesso a este depoimento). Outro registro importante que vai ao encontro destas ideias é a assertiva que Luiz Antonio encontrou na última página do prontuário do compositor: “suicidou-se”. Esta informação aparentemente aparecia isolada, sem qualquer explicação extra.

No depoimento de Álvaro de Sousa Gomes, amigo da família Nazareth, a Luiz Antonio de Almeida, encontramos uma informação que menciona as agruras que sofria: “alí estava o corpo de Ernesto Nazareth que, com certeza, teria procurado fugir, escorregando nas pedras, e morrera afogado... A minha impressão final é de que, em pequenos momentos de lucidez, ele não gostasse do ambiente e por isso procurou fugir, ao que consta, várias vezes. A minha impressão é de que não houve suicídio, mas, sim, acidente, ao procurar sair do lugar, em alguns momentos de lucidez ou, mesmo, ao contrário, de aborrecimentos com médicos ou outros pacientes” (os grifos são meus).

Quase passando despercebido, encontramos no final do bilhete uma maneira de se despedir que pode ser crucial: “Adeus a todos do recolhido E Nazareth”. O psiquiatra Dr. Heimar Camarinha, diretor da Colônia Juliano Moreira na década de 1980, sugeriu a Luiz Antonio que Nazareth estava se despedindo, o que transformaria esta nota em um possível bilhete suicida.

Porém a conclusão a que se chegou na época, e que acabou por constituir a versão oficial, era de que sua morte fora acidental. O então diretor da Colônia, Dr. Carlos Sampaio Corrêa, designou o Dr. Heitor Carpinteiro Péres para fazer reuniões de inquérito para apurar a morte de Nazareth, e este concluiu que a morte fora por acidente.

O enfermeiro particular de Nazareth, Bento d’Ávila também pensava assim: “E, de fato, ele tinha pego a estrada que levava lá pra cachoeira. E quando chegou no fim da estrada, exatamente onde tinha essa cachoeira, pequena, mas quando enche, em tempo de chuva, aquilo fica uma beleza, e tem, embaixo, uma lagoa, um depósito de água, uma barragem pequena... E o Nazareth entrou pela subida do negócio, e subiu, foi subindo, escorregou lá em cima, no limo, que na sombra, no mato, não dá sol e cria muito limo... E ele escorregou no limo e caiu dentro da barragem. E morreu lá.”

O corpo de Nazareth só foi encontrado três dias depois de seu desaparecimento, no dia 4 de fevereiro, por uma das turmas que se formaram por familiares e amigos pela mata em torno da Colônia, em busca de Nazareth. É comum encontrarmos a informação errônea de que ele foi encontrado na “Cachoeira dos Ciganos”, quando na verdade se tratava da cachoeira sem nome que desemboca na represa da Colônia.

O Paiz, 06/02/1934

Segundo uma notícia nO Globo desta época, o fato foi comunicado às autoridades do 24º distrito, tendo o comissário Paulo Nogueira providenciado para que fosse feita a remoção do cadáver para o Instituto Medico Legal, onde se concluiu que sua morte foi devida a asfixia por submersão. Uma matéria no jornal A Noite afirmou que Nazareth apresentava “equimoses no frontal direito e no supercílio”, não ficando claro se foram em decorrência de algum traumatismo.

Não fica claro também quão avançado era o estado de loucura de Nazareth. Apesar dos relatos de seu estado de confusão mental (agravados pela surdez avançada), vemos também relatos de que ele ainda tocava piano com relativa coerência. Além disso, referia-se com ironia ao próprio estado. Segundo Bento, em uma das vezes que foram visitar a casa de música Arthur Napoleão, Nazareth tocou a pedidos algumas músicas, que eram sempre bem recebidas, e depois afirmou aos presentes: “Estão vendo, viram só?... Eu estou maluco, mas ainda toco melhor que vocês!...”.

Em outra ocasião, Nazareth afirmou ao musicólogo Mozart de Araújo: “Tenho para este carnaval uma marcha que vai abafar. Quer saber o nome da marcha?”. Araújo mostrou-se interessado. Ernesto Nazareth, falando-lhe ao ouvido, disse: “O título é este: ‘Estás maluco outra vez?”. (história narrada por Orestes Barbosa em seu livro “Samba”, com complemento de Luiz Antonio de Almeida, que entrevistou Mozart de Araújo e a complementou).

Como podemos ver, o caso todo envolvendo a morte de Nazareth é complexo e exige uma análise multidisciplinar aprofundada, que procuramos iniciar com este texto.

E qual a sua opinião? Deixe-nos um comentário abaixo.

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Como uma curiosidade, o "Jatahy" que Nazareth menciona no bilhete tratava-se do “Xarope de Alcatrão e Jatahy”, amplamente divulgado nos jornais da época, e que possuía uma propaganda cômica:

Revista “O Gato – Álbum de caricaturas”, 24/02/1912.
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Agradecemos ao Instituto Jacob do Bandolim, que cedeu a gravação do relatório de Jacob sobre a morte de Ernesto Nazareth, e a Luiz Antonio de Almeida, biógrafo e herdeiro-honorário de Ernesto Nazareth, que pesquisa sua vida há quase 40 anos, e a quem somos imensamente gratos por ter compartilhado sua pesquisa, com autorização para citação.

TAGS História

COMENTÁRIOS

Thiago Leitor - 21.04.2014

Casa do Administrador da Colônia?

Olá! Primeiramente meus parabéns por essa matéria e pelo site que eu ainda não explorei, mas o farei quando terminar de digitar esse comentário. Já morei na Colônia Juliano Moreira quando pequeno e gostaria muito de saber se a casa do administrador da colônia que aparece em uma fotografia neste post, é aquela que fica bem próxima da Igreja Nossa Senhora dos Remédios e em frente ao Aqueduto? Obrigado desde já!

Edson Pinto Junior - 06.04.2014

Memória e cuidados

Admirador da obra de E.Nazareth, é sempre bom saber que sua história e memorias(pessoais e musicais) ainda estão presentes em nossas vidas. Pena tão pouca divulgação,

Guido de Castro - 19.06.2013

Ao Melhor Compositor Popular do Brasil!

As circunstâncias de sua morte pouco importa. Importa sim constatar o descaso, ainda hoje, com pacientes mentalmente perturbados. Quanto a sua obra, é magnífica, devendo ser mais divulgada. Aliás, assim como o fado português tornou-se patrimônio imaterial da humanidade (UNESCO), o nosso "Choro" - "Chorinho" mereceria o mesmo reconhecimento, tendo como um dos insignes representantes o Grande Compositor Nazareth.

Veronica Favato - 31.05.2013

Fiquei comovida!

Como um homem tão dinamico e de bem com a vida, que ainda doente fazia piadas e tocava piano pôde ter um fim tão trágico? Estudarei ao piano algumas obras de Nazareth em sua homenagem.

Newton Alfredo Ribeiro de Noronha - 20.05.2013

Tragédia brasileira

Fiquei comovido e profundamente triste ao conhecer os fatos perturbadores de uma tragédia com hora marcada e local marcado. Já tinha assistido a revelação, pelo Fantástico da Globo, dos horrores daquela instituição; mas a sua pesquisa sobre os pormenores da tragédia eu não as conhecia. Conclusão, será que é assim que nosso país trata nossos gênios musicais, nossos compositores, nossos pianistas, nossos músicos que deixam para a nossa gente um patrimônio de arte e beleza? Nazareth merece um dia consagrado a seu nome e à sua memória, pois entregou sua vida para criar nossa música brasileira e a fazê-la, senão a melhor, mas a mais lúcida e original de todas que amamos.

Edson - 23.04.2013

ERNESTO NAZARETH

MUITO BOM... GOSTEI DAS INFORMAÇÕES!

Eduardo - 26.03.2013

parabéns pela pagina

David H. Finke - 20.03.2013

Is there a place (other than copying to "Google Translate") where I can click a button that will also render this in English, for those of us unfortunate enough not to be able to be in your country, and not understanding your beautiful Portuguese language? I'm not asking Alexandre to take more time to translate this personally; it's enough that you've done the scholarship and make the basic facts known to us. I simply am eager to soak up as much as I can, as easily as I can. With appreciation, —DHF (Missouri, USA, but now in Ravenna, Italy, on the way to Kecskemet, Hungary, for a Ragtime Festival featuring Mimi Blais and Larisa Migachyov!)

David H. Finke - 19.03.2013

Is there a place (other than copying to "Google Translate") where I can click a button that will also render this in English, for those of us unfortunate enough not to be able to be in your country, and not understanding your beautiful Portuguese language? I'm not asking Alexandre to take more time to translate this personally; it's enough that you've done the scholarship and make the basic facts known to us. I simply am eager to soak up as much as I can, as easily as I can. With appreciation, —DHF (Missouri, USA, but now in Ravenna, Italy, on the way to Kecskemet, Hungary, for a Ragtime Festival featuring Mimi Blais and Larisa Migachyov!)

Ricardo Tacuchian - 18.03.2013

A morte e a vida de Ernesto Nazareth

Tocante a história de um grande artista no final de sua vida. Nunca saberemos se foi um acidente ou um suicídio. O fundamental é que ele morreu em vida quando foi internado na Colônia Juliano Moreira. Ele possuía momentos de lucidez e, mesmo quando entrava em transe, com comportamentos fora dos padrões do que chamamos de “normalidade”, ele possuía sua lógica própria. Portanto, segrega-lo de seu mundo e de seu piano foi uma violência que o matou antes de seu afogamento. Eu diria um final trágico para uma eternidade gloriosa. Parabéns a Luiz Antonio de Almeida, a Alexandre Dias, ao falecido Jacob do Bandolim e às dezenas de intérpretes que redimem os pecados da sociedade da época de Ernesto Nazareth, mantendo viva a sua memória e a sua obra. Nazareth, na verdade, morreu em vida, mas continua vivendo depois de sua morte.

Roberta Cunha Valente - 18.03.2013

Pobre Nazareth, violência sexual a essa altura da vida... :-( Acredito na tese de acidente durante a fuga, mas o fato de ele estar de pijama dá margem pra pensar no suicídio... enfim, escrevo para registrar aqui o quanto sou fã de vocês, Alexandre e Luiz Antonio. Parabéns. beijo

Neti Szpilman - 18.03.2013

Morte de Nazareth

A verdade é que muitas vezes a pessoa nesta condição tem momentos de lucidez, e aí que reside o problema. Um homem como Ernesto, será que tiraria a vida? Se estava sempre querendo fugir é porque buscava um outro caminho para sua existência. É uma pena que a família não tenha entendido os sinais. Eu vou continuar de maneira romântica a pensar que ele lembrou do aniversário do filho e buscou o tal caminho que levaria a sua casa. Caiu e se afogou acidentalmente. Mas quero parabenizar o Luiz Antonio por ir tão fundo nesta pesquisa.

Maria Angela Pires - 18.03.2013

Que tristeza !

Consta de biografias que Nazareth havia suicidado mas as condições em que ele se encontrava me leva a crer que foi crueldade da família mesmo. Lembrei-me de Schumann que se internou no sanatório porque ouvia vozes e os amigos o aconselharam a se internar para não prejudicar a família. Este texto levou-me a crer que Nazareth não estava louco. Apenas gostava de liberdade e idoso deveria dar trabalho por esta necessidade de ser livre. Compositor que com certeza não estaria arraigado às condições materiais e normais, sonhava, compunha e como um pássaro queria ser livre. Para mim foi suicídio sim e com razão. Falta de amor familiar. Lamentavelmente.

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