O LAÇO DE NAZARETH

Alexandre Dias 29.05.2012

O que define o estilo de um artista? Em alguns casos especiais, existem “marcas registradas”, indissociáveis de seu estilo, como as oitavas cromáticas opostas de Franz Liszt, as bandeirinhas de Alfredo Volpi, ou os vidros coloridos esculpidos de Dale Chihuly.

Ernesto Nazareth também possui várias marcas que fazem seu estilo único, sejam de caráter rítmico, harmônico, melódico, ou mesmo relacionadas à sua apurada técnica pianística. Hoje vamos falar de uma dessas marcas, presente em seu rico universo melódico.

Quem já ouviu a música Escorregando já deve ter percebido que a melodia começa com alguns loops (clique aqui para ouvir a primeira parte da peça, na gravação de Maria Teresa Madeira):

Melodia inicial do tango brasileiro Escorregando

Na verdade, a melodia sobe e desce três vezes (indicado pelas setas), fazendo um caminho sinuoso que está presente em dezenas de suas peças. Vamos chamar este padrão de “o laço de Nazareth”, que pode ser visualizado melhor na ilustração abaixo.

Nós podemos defini-lo pela fórmula básica: sobe 3, desce 2, desce 4. Essas medidas são aproximadas, pois o tamanho de cada salto pode variar, mas o desenho sempre forma uma sequência de voltas, que se assemelha a uma fita fazendo o caminho de um laço.

Essa sequência de três notas pode ser repetida de modo contínuo quantas vezes necessário, formando desde pequenos adornos na melodia até uma verdadeira montanha russa de loopings. Seu uso em sequência produz formas curvilíneas, em desenhos melódicos magistrais.

O laço também tem uma propriedade curiosa: sua repetição pode fazer emergir diferentes padrões polirrítmicos, pouco comuns na maioria das músicas dos contemporâneos de Nazareth. Isso acontece especialmente nos tangos brasileiros, em que a célula ternária do laço se cruza com a batida binária da peça, como acontece em Desengonçado (clique aqui para ouvir o trecho abaixo, em gravação de Alexandre Dias):

Na terceira parte do Odeon vemos outro típico exemplo do laço, exatamente no trecho em que a letra canta “esse chorinho que hoje em dia ninguém sabe mais” (indicado pela seta abaixo).  (clique aqui para ouvir este trecho, na gravação de Nara Leão)

Este padrão permeia a obra de Nazareth desde suas primeiras peças nas décadas de 1870 e 1880 até suas últimas composições na década de 1920. E é utilizado de maneira tão engenhosa, que merece ser estudado futuramente.

A maioria dos laços contém entre duas e três voltas, porém algumas músicas possuem laços com quatro ou mais voltas, como este trecho da segunda parte do tango Carioca, em que podemos ver o laço (indicado pela seta) em meio a melodias planas. Clique aqui para ouvir o trecho, na gravação de Arthur Moreira Lima. O laço ocorre entre os segundos 12 e 13.

O laço nazarethiano aparece predominantemente em suas valsas e tangos brasileiros, e em algumas polcas. Curiosamente, não aparece em nenhuma das marchas, fox-trots, schottichs, ou hinos.  Abaixo listamos todas as peças em que o laço aparece:

Com 1 volta: Suculento (compassos 7, 13, 14), Orminda (c.47), Onze de maio (c.118), Thierry (c.4)

Com 2 voltas: Vitorioso (c.64), Pipoca (c.66), Ouro sobre azul (c.7), Gotas de ouro (c.14), Floraux (c.32), Caçadora   (c.59, 59), A Fonte do Lambary (c.31,32), A bela Melusina (c.23, 32), Proeminente (22, 23, 24, 25), Catrapus (c.15, 83), Henriette (c.93), Cardosina (28, 29), Gracietta (c.23), Pinguim (c.55-56), Eponina (c.49,50), Vem cá, branquinha (c.21,22),   

Com 3 voltas: Henriette (c.27, 74), Gracietta (c. 19- 20, 27, 28), Cardosina (c.30, 31), Yolanda (c.95), Talismã (c.59, 60), Saudade (c.53, 54), Odeon (c.54), Pinguim. (c.51-53), Escorregando (c.0, 1), Julieta (c.38), Cutuba (c.31), Noêmia (10, 11), Desengonçado (c.19)

Com 4 voltas: Eponina (c.47, 48), Noêmia (c. 15, 16), Dora (c.49-51), Dirce (c.63, 64), Noturno (c.8), Carioca (24, 25), Vem cá, branquinha (c.29-31)

Com 5 voltas: Vem cá branquinha (c.17-19, 25-27), Desengonçado (c.11-13), Helena (c.7, 8), Talismã (c.67, 68), Españolita (37-39, 53-55, 62,63),

Com 7 voltas: Elegantíssima (c.8, 82, 83)

Com 8 voltas: Fantástica (35-38)

Por fim, batendo todos os recordes, temos a terceira parte da valsa Expansiva, cuja melodia faz 60 voltas (clique aqui para ouvir o trecho, na gravação de Aloysio de Alencar Pinto).

Em posts futuros vamos conhecer outras marcas do estilo de Nazareth.

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Agradecimento ao Grupo Flamba pelas ilustrações dos laços

TAGS Obras

COMENTÁRIOS

Alexandre Raicevich de Medeiros - 06.05.2013

laços comuns

Alexandre, sua análise é muito boa. Essas estruturas de salto seguidas por uma construção descendente, tão presentes nas composições de Ernesto Nazareth, dão forma a movimentação das peças, e também, podemos dizer, caracterizam o estilo rítmico melódico da música dos salões do fim do século XIX. Parabéns!

Luiz Carlos Almeida de Araujo - 25.09.2012

a respeito do "laço nazaretiano"

Guerra-Peixe, quando mencionava aspectos composicionais, falava de alguns procedimentos habituais, que permeavam as escritas de vários autores musicais, como "regras" quase que naturais que conferiam elegância e boa assimilação melódica, por exemplo. Insistentemente trabalhadas, essas tais "características" certamente acabam por contribuir no que se define habitualmente por "estilística". Creio que, numa primeira análise, parece bastante lógico seu raciocínio, o que traz nova visão estética na obra do referido autor carioca. Parabéns, novamente!

Maria Teresa Fernandes - 30.05.2012

Engraçado, Alexandre, que eu já intuía essa "fantasia de laços" quando tocava ou ouvia as músicas citadas em seu texto. Foi interessante ver essa característica do mestre Nazareth teorizada com tanta competência por você. Parabéns!

Priscila - 30.05.2012

Admiração

Caro Alexandre.Admiro imensamente seu trabalho de pesquisa.Já o admirava antes por sua qualidade pianística, e mais ainda agora vendo o quanto se aprofundou em seus estudos.Só posso agradecer a você por nos mostrar tantas coisas maravilhosas deste nosso tão querido compositor.

Ricardo Tacuchian - 29.05.2012

Alexandre, você segue uma linha de certos musicólogos americanos que dão nomes comuns a determinadas estruturas melódicas ou harmônicas ou, mesmo, a certos comportamentos composicionais que venham a caracterizar alguma música ou o estilo de um compositor. Sua análise destas constantes na melódica de Nazareth é perfeita.

Edgar Duvivier - 29.05.2012

Muito bom seu estudo Alexandre. Cito aqui parte de um poema de Bukowski sobre estilo e arte. 'Style is the answer to everything. A fresh way to approach a dull or dangerous thing To do a dull thing with style is preferable to doing a dangerous thing without it To do a dangerous thing with style is what I call art" Nazareth se lança nas escalas e laços escorregando pelo piano e criando sem medo, arte da maior qualidade.

Edgar Duvivier - 29.05.2012

Muito bom seu estudo Alexandre. Cito aqui parte de um poema de Bukowski sobre estilo e arte. 'Style is the answer to everything. A fresh way to approach a dull or dangerous thing To do a dull thing with style is preferable to doing a dangerous thing without it To do a dangerous thing with style is what I call art" Nazareth se lança nas escalas e laços escorregando pelo piano e criando sem medo, arte da maior qualidade.

Aglaia Souza - 29.05.2012

Professora de Piano (aposentada pela EMB)

Brilhante ensaio! Além de excelente pianista, você se revela um estudioso da obra de Ernesto Nazareth! Aplaudo-o. Continue.

Georges Frederic Mirault Pinto - 29.05.2012

Magnifico!

Trabalho de um verdadeiro "expert". Impressão digital ou DNA do grande pianista. Você demonstra um conhecimento ímpar da música do grande compositor e revela, ao mesmo tempo, um domínio especial do conjunto teórico de música. É sempre bom ouvir meu pai nesta cascata de notas. Muito obrigado. Abraço!

Cristóvão - 29.05.2012

Artigo muito bom! Parabéns pelo bom trabalho, Alexandre.

Denise Dias - 29.05.2012

Inspiração

O que mais me impressiona é a paixão com que você escreve, organiza, executa as obras dos quais você admira! Se todas as pessoas trabalhassem assim, seria perfeito! Um enorme beijo com muito carinho de uma admiradora! :)

Lucas Luiz Martins Ferreira - 29.05.2012

Muito legal primo , adorei esse texto que você fez ^-^

Cintia Dias - 29.05.2012

"Tia Coruja"

Your talent, passion and skill ever cease to amaze me! Adorei a explicacao, clara ate para leitores cujo conhecimento musical e muito limitado (como eu). Sempre "delightful" ouvir e ler tudo o que se refere ao seu trabalho. Bjs saudosos, do seu fan club de Miami. :)

Wandrei Braga - 29.05.2012

Parabéns!!!

Olá Alexandre, Muito boa a analogia e representação gráfica. Parabéns! Abraço e sucesso Wandrei

Luiza Sawaya - 29.05.2012

Alexandre, que fantástico estudo você está realizando, produto de leitura minuciosa e uma síntese incrível da técnica de Nazareth. O nome que deu a esse desenho melódico é digno do mestre: charmoso e encantador. Um grande abraço com admiração, Luiza Sawaya

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