A INDÚSTRIA DE ROLOS DE PIANO BRASILEIROS (PARTE 2)

Alexandre Dias 06.12.2013

(continuação da parte 1)

Como um resultado desta pesquisa, apresento neste link a primeira tentativa de uma “rolografia” nacional, listando todos os rolos de piano brasileiros conhecidos até o momento, bem como rolos estrangeiros contendo músicas e gêneros brasileiros.

Pianistas brasileiros que gravaram rolos de piano no exterior

É importante mencionar que dois pianistas brasileiros realizaram gravações de rolos de piano nos EUA: Guiomar Novaes (entre 1918 e 1919) e Alfredo Oswald (em 1924).

Dos 45 rolos gravados por Guiomar Novaes para os selos Duo-Art, Artona, Audiographic, Welte, Artrio e Art Echo (catalogados em pesquisa não publicada de Denis Molitsas), 19 foram lançados em CD na coleção Masters of the Roll (Vol.3)

As músicas são de compositores consagrados como Chopin, Beethoven, Liszt, Gottschalk, além de outros menos conhecidos como Moret, Grünfeld e Niemann.

Alfredo Oswald gravou pelo menos 13 rolos, contendo músicas de Liszt, Scarlatti, Chopin, Rebikov, e dos brasileiros Alexandre Levy, Henrique Oswald (seu pai), Nazareth e Villa-Lobos, que infelizmente nunca foram lançados em disco. Acesse este site para uma listagem abrangente de rolografias destes e outros pianistas.

Neste vídeo é possível ouvir o rolo em que Oswald interpreta o tango Brejeiro, de Nazareth. 

Observamos também que alguns concertistas estrangeiros gravaram músicas brasileiras em rolos de piano: José Vianna da Motta, pianista português que estudou com Liszt, gravou o Noturno Op. 33 de Alberto Nepomuceno, Berceuse Op.14 No.1 e Noturno Op.6 No. 2 de Henrique Oswald; Mark Hambourg, pianista russo e aluno de Leschetitzky, gravou O Polichinelo de Villa-Lobos; e a pianista italiana Maria Carreras,  gravou a Galhofeira de Nepomuceno.

Le Boeuf sur le Toit (O Boi no Telhado)

As informações encontradas nesta pesquisa forneceram um insight para uma via ainda não explorada na pesquisa sobre o balé sinfônico de Darius Milhaud “Le Boeuf sur le Toit” (O Boi no Telhado), que cita 28 melodias brasileiras, sendo 3 delas ainda não-identificadas. A pesquisa em torno desta música foi iniciada pelo musicólogo Aloysio de Alencar Pinto, e depois capitaneada pelos pesquisadores Manoel Aranha Corrêa do Lago (que organizou livro O boi no telhado – Darius Milhaud e a música brasileira no modernismo francês, publicado em 2012 pelo Instituto Moreira Salles), e Daniella Thompson, que escreveu “As Crônicas Bovinas”, contando em detalhes a saga envolvendo esta música.

Em sua autobiografia, Milhaud escreveu que o samba Pelo Telefone (e possivelmente outras músicas populares) era tocado incessantemente por pianolas:

“Pelo Telefone, a música do carnaval de 1917, era ouvida em todos os lugares a que se ia, martelada [ground out] por pequenas orquestras na frente dos cinemas da Avenida, tocada por bandas militares e orquestras municipais, batida por [churned out by] pianolas e gramofones, assoviada e cantada repetidamente [after a fashion] em todas as casas... Ela nos perseguiu durante todo o inverno”

Milhaud pode ter ouvido através de pianolas não só o samba Pelo Telefone, mas também algumas das músicas que citou em seu balé Le Boeuf sur le Toit, pois foram encontradas em rolos de piano sete das músicas que citou, incluindo o tango carnavalesco de Zé Boiadeiro que dá nome ao balé. São elas: “O matuto” (4 rolos diferentes), “Que Sodade” e “Sou Batuta” de Marcello Tupynambá, “Seu Amaro Quer” de Soriano Robert, “Vamo Maruca Vamo” de Juca Castro, “Caboca di Caxangá” de Catullo da Paixão Cearense e “O Boi no Telhado” de Zé Boiadeiro.

É provável que as três melodias que permanecem não identificadas (incluindo o marcante tango da cena "Mort du Policeman") podem estar presentes em rolos de piano sul-americanos.

A melodia em questão, que tem um ar espanholado, pode inclusive ser um dos inúmeros tangos ou pasodobles lançados na Argentina e Uruguai pelas fábricas de rolo. Reforçando esta ideia, observamos que o primeiro subtítulo de Le Boeuf sur le Toit foi “Cinéma-symphonie sur des airs sud-américains”e só depois seu subtítulo passou a referenciar canções brasileiras.

Na propaganda abaixo, é possível ver uma listagem de lançamentos de rolos da Casa Beethoven, que inclui o tango O Boi no Telhado no final.

Propaganda da Casa Beethoven, 1917.

Referências na cultura brasileira

Em 1910, quando os pianos automáticos eram objeto de grande interesse e admiração da população, foi encenada uma sátira em três quadros intitulada “A Feira do Diabo”, de Eduardo Schwalbach, com música de Felippe Duarte. O quadro No.7 intitulava-se “Pianola” (que também era o nome de uma das personagens), mostrando que o instrumento fora absorvido pela cultura dos teatros de revista, um índice do sucesso destes instrumentos.

Porém, como mencionado no início deste texto, hoje há apenas uma memória muito vaga do que foi a era das pianolas que se desenvolveu no Brasil entre as décadas de 1910 e 1920.

No livro “Capitães de Areia’, de Jorge amado, publicado em 1937, a pianola já era referenciada como algo do passado, embora de maneira poética: “Como as crianças, os grandes cangaceiros, homens que tinham vinte e trinta mortes, acharam belo o carrossel, acharam que mirar suas luzes rodando, ouvir música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados cavalos de pau era a maior felicidade” (trecho de Capitães de Areia, 1937, de Jorge Amado, capítulo “As luzes do carrossel”).

Parte da cultura das pianolas envolvia o fato de serem instrumentos mecânicos, associados à falta de expressão. A facilidade com se executava uma música, sem que fosse necessário ter estudado, era frequentemente criticada ou ridicularizada.

Em 1924, a Revista de Cultura Musical, impressa em São Paulo, resumiu este pensamento de maneira irônica em uma crônica de Jacques Dalcroze: “A historia da Senhorita Leonor é a mesma de todas as jovens que consagram onze anos e meio de sua vida a tocar exercícios para poder executar a Rapsódia No.2 de Liszt, que a pianola, sem ter estudado, toca muito melhor, e que quinze dias depois da audição ou do exame já não sabem tocar corretamente.” (Ano I, No.5, Fev/1924).

Este aspecto maquinal das pianolas foi trabalhado pelos poetas, como Gregório Fonseca (1875-1934), membro da Acabemia Brasileira de Letras, que fez a seguinte analogia: “o matrimônio é a pianola do amor; nas mais belas árias que executa, transparece o mecanismo da lei humana, sopitando instintos de emanação divina” (fonte: ABL)

E Guilherme de Almeida, que a utilizou como título de um de seus mais belos poemas:

Pianola

Uma última saudade arranha
o silêncio coagulado do bairro discreto.
A lua como uma imensa aranha
estica entre dois postes cinco fios retos
onde as estrelas pousam como notas musicais.
Eletrificação de tristezas ancestrais.

E sob o luar voltaico da cidade niquelada
esfarela-se a eterna
a velha alma latina triturada
na engrenagem moderna. 

(Guilherme de Almeida. “Meu”, 1925; também publicado em um número da revista Ariel).

No universo musical, além do ragtime “Pianola” de Sinhô, já citado, há também um choro inédito de Garoto (1915-1955) intitulado “A Pianola na Fazenda”, composto em julho de 1953, e que trás uma certa nostalgia de uma época que o compositor viveu quando criança.

Cabeçalho do manuscrito de A Pianola da Fazenda, de Garoto. Coleção particular do pesquisador Jorge Mello.

Antigas “pianolas da fazenda” por vezes aparecem à venda em sites de leilão, ou fotos em locais históricos, como esta, em uma fazenda de SP, servindo como um dos últimos testemunhos de uma época de “pianolatria” que produziu instrumentos automáticos de enorme engenhosidade. 

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Termino este texto conclamando colecionadores de rolos de piano a nos escreverem mandando informações para nos ajudarem a completar o catálogo da “rolografia” brasileira.

Agradecimentos

Este texto foi escrito ao longo de 2 meses com o apoio de diversos amigos que me ajudaram na busca deste tema ainda tão inexplorado na literatura. Meus sinceros agradecimentos a: Horacio Asborno, colecionador argentino que possui milhares de rolos sul-americanos e que tem prestado um serviço inestimável à cultura filmando centenas deles em sua pianola e postando os vídeos no youtube; Luiz Antonio de Almeida, biógrafo de Ernesto Nazareth, que gentilmente forneceu o precioso catálogo da Casa Beethoven de 1914; José Silas Xavier grande pesquisador e colecionador que me emprestou o raro livro “Registro Sonoro por meios mecânicos no Brasil” (HMF, 1984) de Humberto Franceschi, um dos poucos a mencionarem a indústria de pianolas que existiu no Rio de Janeiro; Rogério Resende e a Casa do Piano, que possui 5 pianolas em seu museu de pianos sui generis localizado em Brasília, e que permitiu que eu consultasse sua preciosa coleção de mais de 400 rolos; Manoel Aranha Corrêa do Lago, de cujas pesquisas sou imenso admirador, e com quem pude trocar ideias em torno da obra Le Boeuf sur le Toit; Djalma Candido, que escaneou duas propagandas da Casa Beethoven presentes em partituras de sua coleção; membros da lista Player Piano Talk, do facebook, que me ajudaram a esclarecer várias dúvidas relacionadas à numeração de rolos americanos e europeus; membros da lista de e-mails (e ao respectivo site) Mechanical Music Digest; Adam Ramet; Julian Dyer, que forneceu informações detalhadas sobre 24 rolos de piano uruguaios de sua coleção; Georges Pinto, que gentilmente cedeu o arranjo que seu pai, Aloysio de Alencar Pinto, escreveu sobre a música Pianola, de Sinhô, para piano a 4 mãos; André Mehmari, que me informou sobre o Yamaha disklavier TV, tendo inclusive se apresentado através deste sistema nos EUA em 2013; Douglas Passoni, que rediagramou minha transcrição da música “Pianola” de Sinhô; Jorge Mello, que forneceu o manuscrito de “A Pianola da Fazenda”, de Garoto; L. Douglas Henderson; Roberto Lapicirella, Daniella Thompson; Leonardo Miranda; Dib Franciss, que forneceram dicas valiosas; e aos amigos Bia Paes Leme e Euler de Araújo Gouvêa, que forneceram acesso aos preciosos rolos presentes na coleção José Ramos Tinhorão, mantida pelo Instituto Moreira Salles/RJ.

Algumas fontes para consulta sobre pianolas online:

Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional 

... sobre Pianolas y rollos en Argentina, site criado pelo colecionador Horacio Asborno

Canal de Horacio Asborno no youtube, que disponibiliza centenas de vídeos contendo rolos de piano sul-americanos

The Pianola Institutute

The Pianola News

Museu da Pianola, na Holanda

Rolografia de diversos concertistas internacionais, elaborada por The Reproducing Piano Roll Foundation

Texto do colecionador Julian Dyer sobre um lote de 24 rolos de pianos uruguaios que adquiriu

Trabalho de conclusão de curso “Representação e Análise de Interpretações Expressivas - Um Estudo da Dinâmica e da Agógica” de Lucas Simões Maia (UFRJ – Escola Politécnica - Departamento de Eletrônica e de Computação), defendida em 2013, que resume de maneira clara a história das pianolas. 

Artigo “Um Legado Musical em Rolos para Pianos Auto-Executantes”, de Geraldo Henrique Torres Lima publicado no livro de trabalhos apresentados no Encontro do NatFap: Núcleo de Arte e Tecnologia da Faculdade de Artes do Paraná realizado em 10, 11 e 12 de agosto de 2011 

 

TAGS História, Obras

COMENTÁRIOS

Georgres Frederic Mirault Pinto - 10.12.2013

Excelente artigo!

Parabéns pelo artigo. Claro, completo e objetivo. Continuo procurando nos papéis de meu pai alguma referência sobre as Pianolas. Abraço cordial!

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